O afastamento do senador Aécio Neves e a defesa da ordem legal defendida pelo PT contra o afastamento deste senador vem dividindo internamente o PT e causando grande polêmica nos meios jurídico e político nacional.

Os estudos das instituições políticas democráticas têm sido minha preocupação nas últimas duas décadas. Neste  momento de grandes debates lembro do iminente cientista político italiano Giovanni Sartori, que no livro Teoria da Democracia Revisitada faz uma clara distinção entre igualdade e liberdade.

No debate este escritor diferencia claramente os conceitos de democracia substantiva (igualdade) e a democracia procedimental (liberdade).  Dito de outra forma, o Estado Democrático de Direito é uma das invenções civilizatórias mais importante da existência humana, pois produziu as condições, pela primeira vez na história, da constituição governar o Estado, in totum.

Traduzindo, enquanto no curso de seis mil anos do registro da presença do aparato estatal na história, foi somente no curso dos últimos 200 anos que a humanidade, a partir do ocidente conseguiu produzir uma engenharia institucional em que o governo das leis passa a se sobrepor sobre o governo dos homens.

Como este é um constructo surgido a partir da filosofia e da ciência política, os pressupostos são altamente abstrato e se sustentam com base na lei, no seu poder infra estrutural  e na adesão da maioria da sociedade e dos grupos políticos à ordem estabelecida. Portanto, a ordem constitucional democrática se sustenta com base em ideias, instituições, vontade popular e nas forças coercitivas a serviço da constituição democrática.

O debate entre a igualdade e liberdade  e a emergência dos direitos negativos, expressos na proteção do indivíduo e da sociedade contra os desmandos dos governantes, sempre foram vistos por um senso comum de uma esquerda iletrada como direitos burgueses. Esta trajetória se inicia nos debates que antecederam e durante a existência da revolução russa e seus consequentes, onde a democracia e suas instituições foram descartadas como símbolo da ordem burguesa no exercício da competição política.

Ainda hoje, vemos grupos e partidos políticos trabalhando com teses de que a democracia não é um valor em si, mas de que teria a democracia burguesa, que seria a democracia eleitoral e a democracia operária , que seria a democracia dos conselhos populares diretos.  A realidade demonstra que democracia eleitoral e democracia dos conselhos são duas faces da mesma moeda que é a democracia participativa.

Saindo deste debate maniqueísta entre democracia burguesa e democracia operária, voltemos ao debate em torno da igualdade e da liberdade. A igualdade diz respeito a conquista de condições de vida digna onde os bens e riquezas do País estejam à disposição de toda a sociedade. Já a liberdade significa a existência de um arcabouço institucional democrático que proteja o cidadão e a sociedade do arbítrio do governante.

O que ocorreu no Rússia e seus satélites no curso do século XX foi a supressão total da noção das liberdades procedimentais, ou do liberalismo político, entendido como um conjunto de leis e normas constitucionais que impeçam a ação intutetalável dos governantes, como ocorreu, até recentemente na história humana, e hoje ainda ocorre em alguns satélites remanescentes dos socialismo totalitário que emergiu no século XX.

Em síntese, a invenção do Estado Democrático de Direito é um pressuposto da liberdade coletiva humana. Nenhum governante está autorizado a governar  em nome de sua própria consciência ou de seu grupo político. Nenhum Estado de Fato, não garante segurança para a sociedade. Mesmo em Sociedade pós revolucionárias, o Estado de Fato deve ser uma transição muito rápida, a convocação de uma assembleia nacional constituinte ampla e democrática, sempre deve se impor, para constitucionalizar o poder de mando legal  e legítimo, sob pena da emergência de ferozes Ditaduras, como conhecemos no curso da existência do leste europeu socialistas e seus satélites no mundo e nas experiências nazi-fascistas e nas Ditaduras Militares.

Partindo destes pressupostos civilizatórios, passo a discutir  o afastamento do senador Aécio Neves. É verdade que a presidente Dilma foi afastada a partir de argumentos legais casuísticos, sem sustentação na ordem positivada e muito menos costumeiras. Remanejamento orçamentário jamais foi motivo de enquadrar um presidente em crime de responsabilidade em qualquer parte do mundo , portanto, foi usado argumento casuísticos legais para dar cumprimento uma decisão política da maioria congressual com a adesão do Supremo Tribunal Federal-STF.

É verdade, que o senador Delcídio Amaral foi preso a partir de conversas ofensivas que foram gravadas, não  consta na minha leiga visão jurídica, de que Delcídio tenha cometido um crime e pego em flagrante, que lhe permitisse a detenção, mas o congresso foi consultado e o afastou sem questionamento da decisão. Já Aécio Neves foi flagrado recebendo, através de um primo, dois milhões de reais, não foi preso, e recentemente foi afastado por uma turma do STF e impedido de sair de casa à noite e agora assistimos o levante do senado, e até do PT.

Ora pois, todos sabemos que a ordem legal foi ferida a partir de uma coalizão explícita entre o congresso e o supremo. Estamos assistindo o presidente da república usando a legislação para obter abertamente  os favores da maioria da Câmara dos Deputados contra a autorização para ser processado pelo STF e os grandes meios de comunicação de massa estão calados este comportamento promete se repetir nos próximos dias.

Com o episódio da posição do PT em se levantar contra o afastamento do senador Aécio Neves, devemos acreditar, sinceramente, que esta posição se move pelo desejo absoluto de defesa de uma ordem constitucional? Ou seria uma posição que visa a autoproteção numa conjuntura próxima? Afinal todos nós lembramos da cassação política do presidente Collor e lembramos também o papel que o PT teve naquele episódio.

E ai iniciamos o debate, que é legal mas é também político. Em casos objetivos de crimes comuns, ou crime de recebimento de recursos fora de período eleitoral, patrocinado por uma empresa comprovadamente corruptora, como a JBS, podemos pensar em enquadrar este crime como  político ou comum? Caso seja um crime comum, podemos defender o direito à imunidade parlamentar deste criminoso?

Esta é a raiz do problema. Os senhores petistas defensores da ordem constitucional , se apegam ao princípio de que nenhum deputado ou senador pode ser preso, sem que o seja em flagrante, sendo que a Casa legislativa deve se pronunciar em até 24 hs sobre aquela prisão. Pois é, Aécio não está afastado por ter sido pego em flagrante, portanto esta norma não mais se aplica. Aécio foi julgado por um colegiado que considerou seu ato criminoso, e que foi cometido há mais de um mês. A decisão fala em suspensão cautelar, e este tipo de infração está prevista na ordem legal. E nestes casos não prevê o posicionamento da Casa legislativa sobre esta infração.

Como veem, a decisão da maioria da turma se baseou em pressupostos  legais.  Por que o PT, sai em defesa do mandato de Aécio, como se o STF estivesse passando por cima da lei? Por que o PT assume a posição franciscana de defesa de uma ordem que não está sendo infringida, pelo menos no entendimento da maioria da turma do STF? Não creio que o a direção do PT seja inocente, esta decisão me parece mais política do que legal. O que o PT deveria fazer seria entrar com uma ação questionando esta interpretação da turma do STF, e não defender abertamente que o senado reveja politicamente a decisão da turma do STF. Esta sim, seria um questionamento da decisão do STF operando por dentro das regras do jogo.

Por outro lado, este debate serve para que o Supremo tribunal Federal-STF retome a racionalidade técnica e constitucional no enfrentamento da grave crise por que passa o sistema político brasileiro. Creio que no episódio do impeachment, o STF foi conduzido pelos fatos para legitimar o impeachment, afinal foi o PT, que originalmente  acionou a suprema corte para que esta reformasse o rito parlamentar do impedimento  aprovado sob a batuta  de Cunha, ex presidente da Câmara dos Deputados. A suprema corte ao dar provimento ao pedido do PT e contra Cunha, legitimou todo o processo do impeachment.

A defesa da ordem legal, dos ritos processuais são os fundamentos da democracia procedimental e da liberdade política. Seria ótimo que esta concepção fosse entronizada na cultura política nacional, assim, nossa jovem democracia sofreria menos atentados dos atores políticos e estatais ultra pragmáticos e imediatistas.

Tenho Dito.

 

 

 

 

 

 

Compartilhar
FaceBook  Twitter