*Edir Veiga
O renascimento da democracia brasileira a partir de 1982 e sua implantação com a promulgação da constituição de 1988, portanto tardia em relações aos países de democracia consolidada no mundo, enfrentou a tarefa inglória de constituir partidos políticos no momento em que os partidos de massa na Europa se encontravam em plena decadência.
Efetivamente depois do ciclo de florescimento dos partidos de massas europeus no pós-segunda guerra, estes entravam em pleno declínio no final de década de 1970. Agora as elites políticas brasileiras tinham pela frente a tarefa de reorganizar o sistema partidário e buscar entronizar no seio da sociedade civil uma cultura democrática baseada em partidos num contexto da terceira revolução em curso, a científica e tecnológica.
Enquanto a democracia partidária declinava no centro do capitalismo mundial a democracia brasileira, suas instituições e seus atores políticos tinham a missão de resgatar os valores democráticos e sua capacidade realizar transformações políticas, econômicas e sociais capazes de gerar credibilidade democrática no seio da sociedade brasileira, especialmente dentre os mais pobres.
Tínhamos baixa cultura cívica e democrática. Nossos meios de comunicação de massas ainda continuam sob controle de poucos grupos midiáticos, as liberdades civis são ausentes nas periferias miseráveis, nossa sociedade é marcada pela concentração de renda e por uma classe média, não majoritária numericamente, e que vive em constante decadência e sob o signo da a síndrome da perda de status.
Portanto, nossa democracia renasceu em contexto político e econômico adversos, nossa sociedade não possuía os pressupostos básicos necessários para pensarmos em termos uma democracia estável no curto e médio prazo, e onde, as grandes transformações em favor dos mais pobres foram operadas por governos ditatoriais.
As conquistas trabalhistas na Ditadura Vargas e os direitos dos trabalhadores do campo no governo Geisel exemplificam esta herança cultural autoritária histórica, ou seja, o povo trabalhador é herdeiro de uma descrença na democracia e de uma admiração por governos autoritários. Eis a cultura antidemocrática que herdamos a partir de longo período de governos oligárquicos e ditatoriais.
É partindo desta informação prévia que passamos a analisar a reconfiguração do sistema político brasileiro produzido pelas eleições de 2018 no Brasil que ocorreu num contexto de estagnação econômica, desconfiança e ceticismo em relação ao governo Temer e num total desmantelamentos dos serviços de segurança pública no Brasil.
Do ponto de vista políticos, os grandes partidos brasileiros de centro direita sofreram estrondosa derrota eleitoral nas disputas para o executivo nacional e para a câmara dos deputados, notadamente, o MDB, o PSDB. Por outro lado, um discurso anti partido, anti-política, anti esquerda e anti-democracia e de apologia da violência e de desprezo às diferenças sociais, de gênero, culturais e morais deslocou os eleitores da centro direita para a extrema direita, materializado na candidatura Bolsonaro.
O sistema partidário-parlamentar brasileiro sofreu uma grande transformação a partir do resultado das eleições parlamentares e presidencial de 2018. O Partido da Social Democracia brasileira-PSDB deixou de ser protagonista das eleições presidenciais. MDB e PSDB passaram à condição de partidos pequenos no cenário político nacional.
Um político que sempre assumiu um perfil outsider na política foi eleito presidente, elevando uma legenda partidária, o Partido Social Liberal- PSL à condição de segundo maior partido parlamentar na câmara dos deputados. Jair Bolsonaro elegeu-se criticando a democracia e exaltando governos ditatoriais e suas atrocidades políticas.
Neste momento, o presidente eleito, monta sua equipe ministerial ignorando os partidos políticos, preenchendo 1/3 do gabinete com ministros oriundos das forças armadas, especialmente do exército brasileiro. No plano político o presidente eleito continua se comportando como se em campanha estivesse e insiste em agredir o Partido dos Trabalhadores, os movimentos sociais e os valores mais caros à democracia pluralista.
Do ponto de vista da tradição democrática, o Brasil está no início desta trajetória. Por aqui, partidos oposicionistas sempre questionam a legitimidade do governante eleito. Crenças que embalam as democracias tradicionais hoje vêm sendo desafiadas pelo presidente eleito como: Valores dos Direitos Humanos, do Estado laico, do pluralismo valorativos e da imprensa livre.
Como nossa democracia está em processo de implantação podemos concluir que a nova conjuntura que foi inaugurada pelas eleições presidenciais de 2018 sugerem cenários de grandes incertezas em relação |ao funcionamento de nossas instituições políticas, especialmente relacionadas às relações entre o poder executivo e legislativo.
Falar das perspectivas da democracia no Brasil exige uma avaliação mínima necessária do percurso da redemocratização brasileira e de suas instituições jurídicas e políticas, a partir do fim da Ditadura Militar e da implantação da nova ordem constitucional inaugurada em 1988.
Fazendo um balanço puramente funcional podemos dizer que entre 1989 e 2005 as instituições do Estado brasileiro funcionaram relativamente bem. As instituições políticas processaram a eleição e posse de seis presidentes da república, incluindo o impeachment de um deles.
Neste período, podemos dizer que o congresso nacional e o poder judiciário funcionaram de acordo com as regras inscritas em nossa constituição. Do ponto de vista político o presidente da república obteve as maiorias legislativas necessárias para governar. Neste período, os exageros do poder executivo nas emissões das medidas provisórias foram adequadamente contidos pelas mudanças institucionais aprovadas no congresso nacional.
As relações entre os poderes executivo e legislativo assumiram o formato de um presidencialismo de coalizão, onde o chefe do poder executivo precisou articular um conjunto heterogêneos de partidos para consolidar uma base parlamentar mais ou menos estável. Muitas críticas e preocupações advieram a partir da enorme fragmentação partidário-parlamentar inauguradas pela Republica de 1988. Do ponto de vista da sustentação parlamentar os presidentes obtiveram maiorias para governar.
No curso destes 16 anos iniciais muitas mudanças institucionais, marginais, foram efetivadas no sentido de dar maior racionalidade nas relações executivo legislativo, é verdade, a maioria sob iniciativa do poder judiciário, diga-se do Tribunal Superior Eleitoral- TSE. Assim, o mandato parlamentar passou a ser considerado como do partido e não do parlamentar; votos brancos e nulos deixaram de contar dentre os votos válidos; acabou-se com a excessiva permissividade para a troca de legendas e deu-se maior transparência nos gastos de campanhas eleitorais.
A partir da posse do presidente Fernando Henrique Cardoso-FHC, iniciou-se uma trajetória onde presidentes eleitos transmitiam o cargo a outro presidente eleito, este fato importante aconteceu após 34 anos, desde a posse do presidente Jânio Quadros em 1960. Este ritual democrático aconteceu entre os anos de 1994 a 2015, portanto 21 anos, quando a presidente Dilma assumiu seu segundo mandato presidencial.
Desde as eleições de 2002, um governo de esquerda social democrático assumiu o governo brasileiro, o presidente Lula e a presidente Dilma, oriundos do Partido dos Trabalhadores vinham governando o Brasil há 13 anos consecutivos. Os principais partidos brasileiros vinham se comportando como autênticos democratas, e os resultados eleitorais vinham sendo respeitados, pelas oposições partidárias.
Desde o início da primeira experiência de uma república democrática e popular brasileira, iniciada a partir de 1946, sempre foram recorrentes, denúncias de corrupção eleitoral e partidária pelos segmentos derrotados dentro do sistema político brasileiro, com evidente repercussão nos meios de comunicação de massas, notadamente jornais impressos, rádios e mais recentemente, nas televisões e nas mídias sociais.
A engenharia constitucional que organiza as relações entre os poderes executivo e legislativo sempre induziram os grandes partidos a fazerem o jogo pesado para a busca de construção de coalizão eleitoral e coalizão de governo, consubstanciado em relações promíscua entre empresas-partidos e governo que permitiam o financiamento de campanha e o subsequente modelo de patronagem congressual exercido pelo governo em busca de maioria parlamentar.
Este modelo ganhava aplicabilidade a partir de um mecanismo de construção de base parlamentar por parte de presidentes, cujos partidos, nunca ultrapassaram a conquista de 20% de assentos parlamentares, notadamente no sistema partidário que emergiu após a recente redemocratização brasileira.
Assim o presidencialismo brasileiro assumia um aspecto híbrido, uma vez que o chefe do poder executivo e o poder legislativo tinham poderes efetivos. O presidente da república detinha todos os poderes inerente a este sistema de governo, onde formalmente poderia nomear e demitir seus ministros discricionariamente, além de ser o chefe de Estado, de governo e da administração pública.
Por outro lado, o poder legislativo, no presidencialismo de coalizão brasileiro, divide solidariamente com o presidente da república o governo do país, na medida em que os partidos participam efetivamente da composição ministerial de governo, negociando diretamente com o presidente seus espaços ministeriais e indicando os nomes a serem nomeados para os devidas espaços negociados.
É no contexto da formação recente dos partidos brasileiros e num desenho institucional que combina representação proporcional, lista aberta e financiamento privado de campanha que se operacionalizam os mecanismos formais e informais de construção de maiorias parlamentares no Brasil nas últimas décadas.
Pois bem, como antes comentado, a partir do ano de 2003 começou o primeiro governo de esquerda no Brasil, de orientação social democrática, mas que no contexto institucional de altíssima fragmentação partidário parlamentar, acabou por conformar-se como um governo de centro-esquerda, haja vista que a enorme heterogeneidade ideológica das bases parlamentares, terminaram por moderar o programa de governo da coalização de esquerda eleita em 2003, que se ampliou e se manteve até o governo Dilma em 2016.
Os primeiros sinais de que estava a caminho mudanças comportamentais substanciais das instituições jurídicas nacionais que visavam punir os pragmatismos partidário e governamental no Brasil, que eram induzidas pelas regras do sistema político no sentido de alcançar maiorias partidário-parlamentares, surgiram com o escândalo do mensalão em 2005.
O objetivo premente, a partir de acordos clientelísticos, para obter apoio de no mínimo 3/5 de parlamentares como base de governo começaram a ser reprimidos juridicamente, estabelecendo-se uma contradição entre o espírito da legislação que sempre induziu os acordos informais e a posição da justiça eleitoral e federal que passam a criminalizar estes mecanismos informais para obtenção de apoio parlamentar.
De um lado o desenho do sistema político nacional que induzia relações íntimas entre empresas, políticos e governo e de outro um poder judiciário que passava a exigir que as negociações pouco republicanas fossem cessadas. Estas regras vigentes, conduziam políticos, governos e empresas a produzirem concertações para que acordos fossem fechados tendo como beneficiários os principais partidos governantes no Brasil.
Assim, governos incorporavam os grandes partidos na composição ministerial, os partidos ganhavam controle de parcelas da máquina federal em todo o país, as empresas financiavam os políticos dos partidos mais influentes nas competições eleitorais e estes agentes partidários devolviam o apoio no financiamento de campanha repassando obras e serviços para estas empresas durante o exercício dos mandatos ministeriais.
Com o advento dos grandes escândalos envolvendo as relações promíscuas entre governos-partidos e empresas, notadamente a partir do mensalão e do petrolão, o poder judiciário, através do ministério público, da polícia federal e das instâncias judiciárias iniciaram uma caçada com vista a combater e punir a corrupção política. Então o poder judiciário lançou-se na missão de comprovar, nos autos, a lógica do pacto clientelista que vinha sustentando a concertação do sistema político baseado no presidencialismo de coalizão.
Sem dúvida nenhuma, todo este ativismo moralista das instituições jurídicas nacional coincidentemente começa a tomar corpo no primeiro governo de esquerda eleito no Brasil, notadamente no governo do presidente Lula. Assim em 2005, após o escândalo do famoso mensalão, que denunciava as relações promíscuas entre empresas, governo e políticos, a corrupção política seria combatida por todo o aparato jurídico nacional.
O clientelismo e as relações pragmáticas que acompanharam toda a história republicana nacional e que sempre esteve sob o comando de partidos conservadores, agora sintetiza o grande mal nacional e que é responsabilizada por todas as mazelas sociais e a esquerda petista é apresentada como a grande comandante destes esquemas gigantescos de corrupção política. Agora o combate a corrupção passa a ser a grande bandeira dos estratos médios de direita e de parte da população mais pobre.
As regras formais do sistema eleitoral e partidário brasileiro eram complementadas por regras informais que se consubstanciavam em organizar um pacto clientelístico entre governo-políticos e empresários que articulava todo o arcabouço do sistema político brasileiro e se materializava nas maiorias parlamentares no interior do legislativo brasileiro. Este modelo se reproduz numa rede entrelaçada que se replica nos municípios e estados.
O sistema judiciário nacional composto por Ministério Público, Polícia Federal e tribunais de justiça buscaram efetivamente desbaratar a corrupção a partir do governo federal e para tal se apropriaram de novos instrumentos para produzir decisões condenatórias que foram as famosas delações premiadas que serviram como o ingrediente final para atacar a elite política nacional, acusada de corrupção e implodir eleitoralmente com os maiores partidos, de centro direita, dominantes nos últimos 30 anos na vida política brasileira.
As grandes mídias conservadoras do Brasil encontraram nesta agenda de combate à corrupção o espaço ideal para produzir notícias bombásticas e ao mesmo tempo combater os governos de esquerda na forma travestida de fazer noticiários imparciais. Assim formou-se uma rede de cidadãos justiceiros em nível nacional, que exigiam condenações. Agora, não existiria outro caminho a seguir para os tribunais superiores, que não fosse condenar, a qualquer custo, os acusados de corrupção.
Que fique claro, acredito que realizada as denúncias, produzidas provas consistentes nos autos processuais, as medidas punitivas se fazem necessárias. Portanto, não posso deixar de declarar que exercer as funções constitucionais é missão das instituições jurídicas nacionais, agora não posso concordar que, em nome do clamor público, devamos formar convicções condenatórias sem que haja provas materiais incontestáveis presentes nos autos.
E mais, deve-se, neste primeiro momento de desconstrução do pacto clientelista que dominou a política brasileira nestes últimas 30 anos, diferenciar claramente o crime político chamado de Caixa 2, que é destinado ao financiamento de campanha e a corrução/peculato que significa a apropriação privada dos recursos públicos por agentes políticos e tecnocratas.
Esta distinção se faz necessária para evitarmos caracterizar crimes políticos como crimes comuns no contexto do pacto informal clientelista em curso. Notadamente, a partir da reforma política, da proibição do financiamento empresarial de campanhas eleitorais, da aprovação das emendas parlamentares, efetivamente, impositivas, aí sim, pode-se criminalizar todas as ações pragmáticas com este perfil negocial.
Fica o desafio para que a cultura política predatória se transforme em cultura política republicana na produção de maiorias parlamentares com base em programas de governo. Este é o futuro desejável, em um país que não possui partido enraizados na sociedade brasileira, e onde a população como um todo, cada vez mais se afasta das instituições partidárias, repetindo um fenômeno que vem ocorrendo em todo o mundo democrático ocidental.
A busca em penalizar, a qualquer custo, os agentes políticos denunciados como corruptos fez com que a justiça brasileira trocasse a produção de materialidade nos autos processuais para comprovar a culpabilidade através de, formação de convicção de culpa, com base em delações premiadas.
No Brasil no contexto pós denúncia do mensalão: condenou-se os dirigentes mais importantes do PT com base em delações premiadas sem que, objetivamente, fossem encontradas provas materiais da relação entre os desvios de recursos e estes dirigentes políticos, a exemplo da Ação Penal 470 que veio a condenar o ex-presidente do PT, José Dirceu.
Enfim, o sistema judiciário nacional, orientado pelo Supremo Tribunal Federal- STF entrou no território da Teoria do Domínio do Fatos, assim expressa: houve desvios, estes desvios favoreceram os partidos de sustentação do governo, mesmo não havendo provas materiais, seria impossível os dirigentes partidários não saberem destes fatos, então: condene-se.
Esta opção jurídica do STF sintetiza todo o percurso das decisões de justiça que envolveram toda a cúpula do Partidos dos Trabalhadores culminando com a prisão do ex-presidente Lula em 2018. Este método de tomada de decisão punitiva teria de ser mantida para todos os escândalos de desvios de recursos públicos posteriores, a exemplo dos escândalos do mensalão mineiro comandado pelo Partido da Social Democracia Brasileira-PSDB e do petrolão, que veio a envolver o PT, o PMDB, o PP e o PR.
É notório de que a enorme publicidade que esta jornada anticorrupção empreendida pelas instituições jurídicas brasileiras atingiram todos os grandes partidos que governaram o Brasil nos últimos 24 anos, e assim, assistimos em 2018 a derrocada eleitoral do maiores partidos de centro direita no Brasil, tendo o PT, mesmo fortalecido nas eleições de 2018, se transformado no partido mais odiado pelos estratos de classes médias e parcela considerável da população mais pobre brasileira, que culpa este partido pela estagnação econômica em curso e pela sua decadência social.
E deste massacre jurídico e midiático a que foram expostos os políticos acusados de corrupção, que a população brasileira, herdou, em 2018 um novo presidente outsider, que foi eleito prometendo combate radical a corrupção e à política de esquerda tendo por base um discurso de ódio contra o pluralismo étnico-sexual e moral, contra os direitos das mulheres, contra os Direitos Humanos e contra os defensores do desenvolvimento sustentável.
Em síntese, as instituições jurídicas do Brasil, ao combater radicalmente as regras informais que davam sustentação à engenharia política nacional condenou a democracia brasileira a um duro teste frente ao novo governo federal que tem a frente um presidente notoriamente adversário da democracia e dos valores humanistas na política.
O contexto midiático construiu uma lógica que conseguiu penalizar as organizações partidárias que lutam por políticas sociais com um raciocínio simples: as causas da crise econômica e do aumento das desigualdades no Brasil é da corrupção, o PT fez um governo corrupto, então o culpado de nossa desgraça é o PT, ganhando enorme apoio dentre os estratos de classes médias.
Mas o tiro saiu pela culatra e quem foi derrubado foram os grandes partidos de centro direita que foram apanhados em acusações de corrupção com grande repercussão nos meios de comunicação. Hoje temos no Brasil, o PT, como o partido mais votado pela oposição de esquerda. O MDB, PSDB saem das disputas eleitorais de 2018 como partidos pequenos dentro do congresso nacional, e o resultado objetivo deste drama político foi a implosão do sistema partidário iniciado no contexto da redemocratização brasileira a partir de 1985.
Em síntese, o poder judiciário, de forma unilateral resolveu criminalizar a atividade política clientelista que sempre dominou a política brasileira. Com o advento das denúncias de corrupção, o STF sancionou as decisões das primeiras e segundas instâncias da justiça que condenaram políticos com base na Teoria do Domínio dos Fatos, e com esta decisão puniu os partidos que participaram do modelo de produção de maiorias congressuais que vem sendo praticado no Brasil.
Neste momento o Brasil convive com grandes incertezas institucionais, haja vista que o novo presidente decidiu que romperá com o modelo político clientelista que deu musculatura ao presidencialismo de coalizão. Como o presidente Bolsonaro construirá maioria parlamentar para sustentar seus programas de governo? Como as elites partidárias se relacionarão com um chefe do executivo que relativiza a importância das barganhas partidárias? Eis respostas que só saberemos nas próximas legislaturas.
Bolsonaro construirá maiorias parlamentares pontuais no contexto de um governo de minoria? Como o governo se fará presente nas mesas diretoras da Câmara e no Senado e nas comissões temáticas dentro do poder legislativo? Eis o tamanho do desfio que as instituições políticas enfrentarão nos próximos anos no Brasil, podemos afirmar: a incerteza nos acompanhará no próximo governo federal.
E o Poder Legislativo? Qual a sua parcela de responsabilidade na próxima conjuntura institucional e política que a democracia brasileira enfrentará?
O fim da República de 1946 com o golpe militar de 1964 coroa toda uma trajetória de intolerância entre as maiores forças políticas nacionais. De um lado as forças que emergiram e governaram o Brasil tendo como ponto de partida a coalizão política em torno do presidente Getúlio Vargas e seus dois grandes partidos, o Partido Social Democrático Brasileiro-PSD e o Partido Trabalhista Brasileiro-PTB, embasado num projeto nacional desenvolvimentista.
Na oposição ao governo tínhamos as forças liberais comandadas pela União Democrática Nacional-UDN e seus satélites. Estas duas macros-forças políticas duelaram entre os anos de 1945 e 1960. A marca destas disputas políticas e eleitorais era a intolerância política e o desejo de aparelhar o Estado para suas aventuras golpistas.
Nos momentos de radicalização política em meados dos anos de 1960, as forças políticas progressistas e conservadoras buscavam capturar o Estado para realizar suas ambições conservadoras ou transformadoras. Assim, a Direita política comandada por Carlos Lacerda clamava por um governo militar, e ao mesmo tempo a esquerda, no entorno de João Goulart, incitava a radicalização política e aspirava por um golpe político de esquerda. E ao final de toda esta intolerância política e ideológica a democracia foi cancelada e a Ditadura Militar veio a governar o Brasil por 21 anos.
Em síntese, foi a luta política e parlamentar sectária entre as maiores forças políticas do Brasil que gerou como efeito as ações de vetos e contra vetos das políticas de esquerda e direita dentro do congresso nacional durante o governo de João Goulart que levou à paralisia congressual que produziu as condições políticas que culminaram com o golpe de Estado de 1964.
Desde a redemocratização o sistema político brasileiro vem gerando as condições para a governabilidade, consubstanciado na eleição do chefe do executivo e na formação do gabinete ministerial com base em acordos partidários que vinham produzindo maiorias congressuais ao presidente eleito. Exceção a esta regra ocorreu no período do governo do presidente Collor que por secundarizar os acordos partidários para sustentação parlamentar, veio a sofrer impeachment precocemente.
Pois bem, no curso de todos os governos da República de 1988, o governo federal construiu e manteve maioria parlamentar com base em acordos partidários que garantiam a estes, participação ministerial em todas as esferas de governo, incluindo cargos, funções e acesso às emendas parlamentares. Todo este arcabouço político foi engenhosamente articulado como consequência de nosso modelo político que se ampara no voto proporcional, lista eleitoral aberta e no financiamento privado das campanhas eleitorais.
Enfim, os fundamentos de nosso sistema político se baseia em uma engenharia constitucional e política que tem, de um lado, as regras formais e de outro as regras informais ou pacto clientelista para produzir maiorias congressuais aos partidos governantes, sejam nas esferas municipal, estadual e federal. Para que todo este arcabouço político e institucional funcione é fundamental que haja uma maioria atuante e uma minoria que não seja capaz de vetar as ações do governo incumbente.
Foi a perda da governabilidade parlamentar, a grande responsável pela tragédia política nacional materializado no impeachment da presidente Dilma em meados do ano de 2016 no Brasil. Mais uma vez o grande responsável por este evento catastrófico para a sociedade brasileira foi a ação dos grupos oportunistas dentro do congresso nacional, que se aproveitando dos escândalos de corrupção e de uma crise econômica, deslocaram a maioria parlamentar da presidente da república em direção à oposição e vieram a derrubá-la do cargo presidencial.
Na primeira sessão do senado federal, a pós a segunda vitória presidencial de Dilma Roussef, o candidato derrotado em 2014, o senador Aécio Neves, declarou guerra sem fronteiras contra a presidente reeleita. Esta fala senatorial sinaliza como seria as relações executivo legislativo no interior do congresso nacional para o período compreendido entre 2015-2018, na política brasileira.
O ano de 2014 terminou com os escândalos do Petrolão que envolvia toda a cúpula do Partido dos Trabalhadores. Em 2015 houve o cruzamento de dois eventos políticos que assumiram grande influência na conjuntura política brasileira futura: uma aguda crise econômica motivada por razões externas e as denúncias de corrupção na Petrobrás que colocavam no olho do furacão partidos da base do governo Dilma, em especial o PT, dirigentes desta empresa estatal e empresários.
O PT havia cometido um erro tático muito importante na eleição da mesa diretora da câmara dos deputados em 2015. Este partido lançou um candidato petista que foi derrotado por uma coalizão do chamado baixo clero da câmara, que elegeu um presidente que era adversário do PT e do governo Dilma, o pemedebista Eduardo Cunha.
Logo no início do segundo governo Dilma, o presidente da câmara dos deputados mostrou todo seu potencial oposicionista e bloqueador das ações do governo no combate à crise econômica que se avolumava no País. Eduardo Cunha passou a dinamitar todas as políticas de governo que visavam cortar gastos públicos para inibir os efeitos inflacionários da crise econômica em curso.
As denúncias de corrupção em curso, a crise econômica que mostrava sua face mais perversa através do desemprego em escala crescente, fez com que a popularidade da presidente começasse a cair. A grande mídia dava enorme publicidade aos efeitos da crise e à incapacidade do governo em reagir. Com a queda da popularidade da presidente da república a base congressual mostrou-se arredia a aprovar medidas impopulares que visavam equilibrar os gastos públicos.
As organizações do funcionalismo público federal reagiam contra as medidas de contenções de aumentos salariais. Os funcionários do judiciário exigiam reajuste de proventos, que foi prontamente aprovado pela câmara dos deputados. As centrais sindicais reagiram contra a reforma da previdência proposta pelo governo que visava aumentar o tempo de contribuição previdenciária. Enfim, o governo estava isolado no congresso e sofrendo forte oposição dos setores mais organizados da sociedade.
É neste contexto que entra em ação o vice-presidente da república Michel Temer e seu desejo de vir a ocupar a chefia do poder executivo federal. Após mais de seis meses de paralisia congressual, ingovernabilidade, crise econômica aguda e os escândalos de corrupção na Petrobras, escândalos estes, que eram superlativados pela grande mídia, com destaque para a Rede Globo de Televisão. Então, Temer assumiu informalmente a coordenação de uma ação política que visava a derrubada da presidente da república.
A partir dai o PMDB (MDB) passou a coordenar dentro do congresso nacional todas as ações que visavam garantir apoio majoritário ao impeachment da presidente Dilma. Dentro de um contexto econômico, político e social caótico conformou-se a maioria de 3/5 necessários para que a presidente Dilma foi removida do poder.
Buscou-se um motivo que aparentasse legalidade para derrubar a presidente e as chamadas pedaladas fiscais foram os motivos políticos encontrados para o impeachment. Pedaladas significavam que a presidente fez remanejamento orçamentário para pagar a Bolsa Família sem autorização do congresso. E assim, os partidos políticos, sob coordenação direta do vice-presidente da república derrubaram a presidente legitimamente eleita, consubstanciando um golpe parlamentar.
Os estratos de classes médias apoiaram e festejaram a derrubada da presidente da república de esquerda. Agora a corrupção era para estes segmentos, a marca do PT e das esquerdas no Brasil. A Rede Globo incitou, chamou as grandes mobilizações pelo impeachment presidencial. Todos esperavam que Michel temer ao final do mandato tampão entregasse o País para as forças democráticas pró-mercado, representadas pelos partidos de centro-direita.
Mas o jogo político não saiu como as elites conservadoras brasileiras queriam. Temer nunca obteve aprovação superior a 5% na sociedade brasileira. O governo golpista cortou direitos sociais, arrochou salários e fez privatizações questionáveis a exemplo da privatização do pré-sal. No curso de dois anos as camadas mais pobres do Brasil sentiram saudade das políticas sociais comandadas pelos governos de Lula e Dilma. E assim, chegaram as eleições presidenciais de 2018 no Brasil.
Ao final, os ataques perpetrados pelos meios de comunicação no Brasil atingiram todos os grandes partidos brasileiros, PMDB (MDB) e PSDB viraram partidos pequenos na câmara dos deputados. O PT liderou nas eleições à câmara dos deputados e veio a eleger quatro governadores e o candidato Haddad obteve 47 milhões de votos.
Por outro lado, emergiu como presidente uma figura obscura que sempre sustentou sua base eleitoral parlamentar na exaltação da Ditadura Militar e suas atrocidades, que tem desprezo pelos Direitos Humanos, pelos direitos da população LGBTI, que despreza a defesa do meio ambiente e que faz questão de mostrar insatisfação com o estabelecimento de cotas raciais no Brasil, que foram responsáveis para que mais de 150 mil jovens pobres adentrassem às universidades públicas.
O novo presidente do Brasil Jair Bolsonaro, é o grande desafio para as instituições políticas e para a democracia brasileira. Este agente político acaba de anunciar que fará política externa com base em seus valores direitistas, secundarizando políticas com os BRICS e agindo em favor dos EUA e União Europeia. Promete retirar o Brasil dos acordos internacionais em defesa do clima e da imigração.
Bolsonaro vem montando seu gabinete ministerial à revelia das elites partidárias e promete fazer um governo que não se preocupa em construir maioria parlamentar. Estes fatos por sí só revelam que a incerteza é a única tendência que apontamos para o futuro da democracia brasileira. Bolsonaro já anuncia uma possível reforma política que visa quebrar a força do PT em eleições vindouras.
Por outro lado, as denúncias hoje requentadas contra os dirigentes do PT levantadas pelos procuradores da Operação Lava Jato apontam para a estratégia de construir as bases de opinião pública, a partir da grande mídia, para que num futuro próximo sejam tomadas inciativas que visem a cassação do registro do PT. Parece que os dirigentes de instituições que deveriam ser imparciais assumem a ponta de lança da luta contra um eventual governo de esquerda em 2022 no Brasil.
O que podemos sintetizar é que no Brasil não possuímos os pressupostos fundamentais para termos a firmeza de que nossa democracia não está sob risco. O governante eleito continua a bombardear a oposição de esquerda. O presidente eleito anuncia que fará guerra política contra a esquerda manipulando as instituições políticas. O poder judiciário continua condenando políticos e dirigentes partidários com base em convicções. A pobreza continua aumentar em nosso país. O modelo político vigente de construção de maioria congressual foi debilitado e o novo presidente pretende governar sem acordos clientelísticos envolvendo a máquina pública.
A depender do novo presidente, a democracia brasileira não comportará mais a contestação e os movimentos sociais, as greves e as mobilizações políticas serão tratados como caso de polícia. Direitos humanos será visto como a defesa de bandidos e a defesa da família tradicional será o sinal para que as diferenças sociais, de gênero, étnicas, sexuais e raciais sejam desprezadas pelas políticas de governo.
Enfim, tempos de incertezas aguardam a nossa democracia e a sociedade brasileira nos próximos períodos.
*Prof. da UFPA.
Texto síntese apresentado na 5ª Semana de Ciência Política.
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